As “burcas” do nosso (des)contentamento
Ainda sobre a recente polémico em torno da proibição do uso da “burca” (que muitos confundem com outras vestes ou outro vestuário feminino islâmico ou muçulmano). Ou muito mais que isso.
A proposta de lei que foi recentemente aprovada na Assembleia da República (ainda carece de promulgação), apesar dos pareceres negativos do Conselho Superior do Ministério Público, a Ordem dos Advogados, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, a Amnistia Internacional ou a CGTP (entre outros) que proíbe a ocultação do rosto em espaços públicos (com referências a vestuário e tradições islâmicas) é um mero exercício de ilusão pública e ideológica, uma hipocrisia parlamentar. A intenção e o objetivo finais, a argumentação e a sustentação usadas para justificar a lei nada tem de substancial, de válido. É apenas o reflexo ideológico e social do extremismo radical da extrema-direita portuguesa.
Nenhuma mulher (ou qualquer pessoa) deve estar sujeita a qualquer tipo de opressão e jugo, de domínio das suas liberdades. Isso é inquestionável e deve merecer, da sociedade, um esforço e empenho no combate a estas realidades. Mas isso faz-se com intervenção, com inclusão, com participação, com relação e nunca por “decretos proibitivos”.
A lei apresentada e aprovada nada tem nada a ver com segurança pública ou nacional, porque isso já o universo jurídico português e muitas normas e regras públicas já o contemplavam.
Não tem nada a ver com a defesa das mulheres porque isso é revelador de uma enorme hipocrisia vindo de um partido que, assumidamente, reduz o papel da mulher a “dona de casa” ou a “fada do lar”, já para não falar da circunscrição da condição feminina à da maternidade. Acresce ainda a ausência de posicionamento e de firmeza política em relação ao flagelo da violência doméstica ou da violência contra as mulheres, e à legitimidade da igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens.
Outro erro “estrategicamente premeditado” é o recurso recorrente à narrativa da subjugação cultural (quase que a lembrar as cruzadas ou os descobrimentos/colonialismo) como se a liberdade e identidade cultural, religiosa ou social fossem passíveis de serem determinadas por lei ou como se a liberdade fosse sinónimo de proibição (em vez de inclusão).
O que resulta, na prática, desta lei, o que está mesmo na sua génese é, precisamente, o seu efeito oposto: o atropelo dos direitos humanos, da liberdade e das garantias, o potenciar contextos de maior opressão e exclusão da mulher islâmica e muçulmana, restringindo ainda mais a sua liberdade (as suas escolhas e crenças) e a sua capacidade de integração.
Algo, aliás que não se estranha (e já está mais que entranhado) porque sempre foi esse o único propósito subjacente à lei aprovada: a xenofobia, o racismo, o ódio aos que são diferentes.
Mas a verdadeira “burca”, o que nos tem sido mesmo vedado e tapado à custa deste ‘divertimento’ ideológico e político, é a discussão pública sobre a realidade do país.
Uma anunciada Reforma do Estado que em nada reforma (sustenta, consolida, fortalece) apenas corta, dilui e dissipa/desmorona e demite o Estado das suas responsabilidades sociais.
O retrocesso na legislação laboral que cria mais precariedade e mais instabilidade profissional, com reflexos na coesão social.
O completo caos na Saúde, como nunca se assistiu nestes 50 anos de democracia e de cerca de 46 do Serviço Nacional de Saúde (o tal que seria recomposto e reabilitado em 60 dias): nas urgências, nos cuidados primários, na desvalorização dos profissionais de saúde, no INEM, no desinvestimento no SNS (para se aumentar mais a despesa com serviços privados).
A crise habitacional cada vez mais agravada pela especulação e pelo mercado imobiliário (entre outros fatores como o turismo a desertificação dos centros urbanos, os baixos salários, etc.) e pelo experimentalismo e o fundamentalismo mercantilista ideológico do governo.
A Educação e a dita Reforma Educativa que tem lançado mais incerteza, mais inquietação, para além de não se vislumbrar as mágicas soluções para todo o ensino (do básico ao universitário) e para a investigação científica, nem para a falta de professores, a cobertura dos horários escolares e das necessidades das escolas, a ausência de consolidação da denominada “descentralização” na educação para a responsabilidade dos municípios.
A lentidão em implementação de políticas públicas que combatam ou minimizem o envelhecimento demográfico do país e potenciem respostas eficazes para o aumento da natalidade ou rejuvenescimento demográfico e apoiem os mais idosos.
A hipocrisia e a indiferença em relação aos contextos sociais, como a violência doméstica, a igualdade, a inclusão, a legislação migratória e da nacionalidade, ou, ainda mais grave, a deterioração dos valores e fundamentos da democracia (como a narrativa ideológico-partidária usada por alguns, ou os deploráveis e condenáveis cartazes eleitorais presidenciais), de um Estado de Direito e das instituições públicas, como, por exemplo, a justiça e a segurança.
O que o país precisava mesmo era de muitas “burcas”, não para tapar o rosto ou oprimir as mulheres, mas para cobrir o Ódio, o Caos, o Medo, a Mentira que alguns querem implementar para destruir ou dividir e depois (tentar) reinar.
Não passarão!... muito menos de lobos disfarçados com pele de cordeiros.